terça-feira, 29 de outubro de 2013

LUAS DE MARIAS

Romance de Wind Rose e Diedra Roiz 
Escrito entre Agosto e Dezembro de 2013

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ESGOTADO
mas a Editora Vira Letra está fazendo por encomenda, é só clicar no link:

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SINOPSE
No inesperado encontro de vidas tão distintas, o maior obstáculo é a diferença de mundos, objetivos e ideologias. O sinal vermelho é o suficiente para parar Cris - impaciente, mas obediente. Do lado de fora, sem regras, Maria está sentada na calçada, emoldurada pela lua que começa a surgir. No entanto, a sinaleira é a única intersecção da vida das duas. Será a atração que sentem uma pela outra, no tempo ínfimo que lhes permite o sinal vermelho, o suficiente para unir universos tão diferentes, mundos opostos em objetivos e ideologias?
Escrito a quatro mãos pelas escritoras Diedra Roiz e Wind Rose, Luas de Marias é mais um grande sucesso da literatura lésbica da internet.

DIEDRA SOBRE O LIVRO:
O que dizer sobre "Luas de Marias"? Sou suspeita demais, pq a Maria Lua foi um presente da Wind Rose pra mim, ela me chamou com uma carinha de quem estava aprontando: “vem aqui ler uma coisa”. Era a primeira cena da história, claro que eu amei, né? Mais ainda quando ela perguntou: “vamos escrever juntas? Vc escreve a Maria Lua?”. A apresentação maravilhosa da nossa amada amiga e brilhante escritora Danieli Hautequest Nunes Furlan é perfeita:
“A dança ininterrupta das cores do semáforo ditam os tons das buzinas, da pressa e da impaciência de alguns, enquanto abre caminho para a alegria, o talento e a esperança de outros. A arte das ruas com seus malabares e encenações sobre a faixa contrasta com os carros e sua falsa proteção de vidro e metal.
Segregação.
Distância que é minimamente ultrapassada por poucos pelo senso de dever das gorjetas. Caridade que ilude a consciência e ajuda a anestesiar ainda mais o coração. 
Vermelho.
Os olhos se distraindo por instantes. 
O mar. O sol caindo. A lua surgindo.
Ela.
Olhar enluarado procurando olhos nublados.
Sorrisos.
Verde.
Turbilhão.
Em um inusitado e breve encontro, Cris saiu com o estranho sentimento de ter deixado um pouco de si e ter carregado com ela um pouco daquele olhar. Maria, ao sorrir e querer desanuviar os olhos de neblina, não fazia ideia de ter desencadeado algo poderoso, que mudaria suas vidas de uma maneira inimaginável.
Duas personalidades e realidades díspares. A doutora das aparências e afirmações, a hippie das emoções e do subjetivo.
Uma quebrando as verdades da outra.
Desconhecendo. Descobrindo.
Convergência de mundos.
Seria a atração suficiente para transpor tantas possibilidades de não?
Em Luas de Marias, Diedra Roiz e Wind Rose, além de falarem de várias formas de amor com o talento e a emoção de costume, nos instigam a rever conceitos e preconceitos. A ter coragem de aceitar e nomear o que realmente importa. A não somente sentir, mas permitir-se ser. E, principalmente, revelar-se.”

Videos de Divulgação:

OBSERVAÇÃO SUPER IMPORTANTE:  
Este é um "romance musical", recomenda-se ouvir as músicas indicadas para melhor aproveitamento da leitura dos capítulos.


PLAYLIST COMPLETA DA HISTÓRIA:
Link da playlist no YouTube


OBS IMPORTANTE: 
O livro não está completo aqui no site, disponibilizamos apenas os três primeiros capítulos para degustação. 

CAPÍTULO 01



CAPÍTULO 01
– Será que se eu também buzinar o congestionamento some?
Eu me perguntava isso cada vez que chegava àquele ponto da cidade. O barulho das buzinas causando uma sensação de caos, um desespero para me mover. Mesmo aqueles que não estavam com tanta pressa assim a adquiriam. Como eu.
Lentamente venci o acesso da Avenida Beira Mar e enfim...
Vermelho.
– Droga!
Lembrei que não tinha pressa, mas ficar parada, mesmo que no sinal, é algo inadmissível nos tempos de hoje... Pressa. Mesmo sem tê-la, tenho que dar a impressão que a tenho.
Suspirei. Não que o vermelho fosse algo horroroso, até gostava. Mas, naquele momento, era a cor de que eu menos precisava.
Precisava menos ainda daqueles “artistas de rua”. Será que não percebem a desconexão existente entre minha necessidade de chegar ao meu destino e suas habilidades inúteis?
– Merda!
A única palavra que consegui gritar no momento em que o menino com rastafári jogou para cima um pequeno cone colorido e deu uma cambalhota antes de pegá-lo novamente.
Contei os segundos, sabia o passo seguinte.
Peguei uma nota de cinco reais que estava no console do carro, coloquei no chapéu velho que o outro me ofereceu, como se aquilo fosse apressar o Grand Finale, que se estendeu por mais alguns segundos.
A sensação de alívio, de dever cumprido se instaurava. Como dizia Raul Seixas: “o auge do meu egoísmo é querer ajudar”.
Verde!
Acelerei em direção àquilo que considerava realmente importante.


Cheguei ao escritório cedo, mas a eficiente senhora Hermínia já estava lá, no seu posto. Me olhou com aquele olhar de quem está prestes a bater continência, mas se limitou a um “bom dia”. Como sempre, não esperou minha resposta, levantou-se e me estendeu o envelope amarelo:
– A doutora Diana deixou algumas orientações para a audiência de hoje e pediu que a senhorita comunicasse a ela o resultado imediatamente após o término.
Por pouco não fui eu que bati continência. Sempre a temi, desde o primeiro dia que entrei naquele escritório, mais de 12 anos antes.
– Tudo bem, dona Hermínia, farei isso.
– Solicitou também que a senhorita acompanhasse de perto os processos em que o doutor Henrique e o doutor Gabriel estão trabalhando, principalmente os contratos do MF Estaleiro.
Suspirei e apenas fiz sinal com a cabeça, pois já estava concentrada em abrir o envelope na minha mão. Sabia o que significava acompanhar de perto: elas não tinham segurança nos dois estagiários contratados para dar apoio em alguns casos do escritório. E, quando se tratava dos negócios do senhor Roberto Ávila, era pior ainda.
Ia fechando a porta da minha sala quando ela interrompeu:
– Doutora Maria Cristina...
Odiava quando ela me chamava de Maria. Suspirei e esperei que ela continuasse.
– Sua... Digo, a senhorita Mirella ligou e não deixou recado.
Mesmo assim compreendi a mensagem de Mirella, pois a ausência de recados significava muito naquele momento.
– Obrigada.
Fechei a porta e me concentrei no dia que teria pela frente, pois Diana e Inês haviam viajado de férias e me deixado a responsabilidade do escritório, o que para mim era fácil. Advogados, estagiários, clientes, juízes... Nada para o qual eu não estivesse preparada. Difícil era dar conta de todas as plantas, gatos e cachorros que elas tinham em casa. Apesar da ajudante que tinham, exigiram veementemente que eu fosse todos os dias ver como eles estavam. Inês me convencia sempre com chantagem emocional:
– Eles precisam de carinho de alguém que eles conhecem, alguém da família. Precisam saber que são amados e que não foram abandonados, você sabe como isso dói.
As duas eram o mais perto que eu já tive do conceito de família.
Encontrei-as, ou elas me encontraram, em um momento da minha vida que foi crucial para mudar o rumo daquilo que poderia nunca ter sido. Ainda na universidade, morando em uma pensão cheia de ratos e cheirando a mofo, conheci-as em uma entrevista para estágio.
Perceberam em mim algo que, segundo Diana, aproximava-se de “um diamante bruto” e, segundo Inês, “uma pérola ainda na ostra”.
Elas me adotaram, e as amo como amaria meus pais, caso os tivesse.
Inicialmente, morei num anexo que havia no andar debaixo da cobertura tríplex em que elas moravam e, mais tarde, me convenceram a ocupar um dos quartos da parte íntima e me tornei parte da família. Logo formada e preparada por elas, assumi minha vida com toda a independência que elas me permitiram, comprei um apartamento, porém perto delas. Transformei-me na “joia rara” que idealizaram: a advogada competente e a mulher nem tão competente assim, pois o sucesso na carreira era inversamente proporcional ao meu sucesso nas relações amorosas.
No retorno para casa, o mesmo trajeto: a sinaleira novamente, o cone, a cambalhota...
Um suspiro de desânimo. Desviei o olhar por alguns instantes e a vi. Atrás dela, o mar, o sol caindo, a lua surgindo. A imperfeição da hora e a perfeição das formas a molduravam. Alguns segundos e ela levantou o olhar... Enluarado. Não sei se me viu, um sorriso tímido...
Correspondi. Eu a vi.
A buzina do carro atrás me fez retornar à realidade e à pressa que eu deveria ter.
Saí daquele transe com a sensação de ter deixado um pouco de mim e carregado junto comigo um pouco dela. Naquele olhar.


A primeira coisa que fiz ao abrir os olhos foi me espreguiçar, deixando escapar um gemido.
Rolei sobre mim mesma, para o meu lado direito, onde Dandara estava, ainda adormecida... Nua. Linda. Beijei-a nos lábios. Ela não acordou, apenas sorriu.
Sentei no colchão e virei para o lado oposto. Artur estava acordado, fumando um bem fininho. Sentou, colou a boca na minha, soltou o ar dentro dela. Puxei, soltei e nós dois rimos. Ele apagou o baseado e trocamos um beijo. O último da maravilhosa noite a três que tínhamos compartilhado. Levantei e caminhei nua até a cozinha.
– Bom dia!
Falei meio cantando para Pedro, que estava sentado perto da porta que dava para o quintal, tocando um Jazz no clarinete. Ele respondeu com notas musicais, no exato momento em que Rosa entrava, com Benvindo enganchado na cintura, só de fralda. Assim que me viu, estendeu os bracinhos, se atirando para mim. Tirei-o do colo dela, apertei, cheirei, beijei:
– Gostoso!
Depois o joguei para cima. Ele emitiu vários sons fofos de bebê feliz. Voltei a apertá-lo e a beijá-lo, nunca me cansava disso. Só o devolvi para Rosa porque estava morrendo de fome. Ela sumiu com ele para dentro da casa.
Tomei café com leite e comi um pão com manteiga encostada na pia mesmo. Estava lavando a xícara e a colher quando Tito surgiu:
– Maria, você viu a chave da bike?
Coloquei as louças no escorredor e me virei para ele:
– Não tá atrás da porta?
– Não.
– Quem sabe ficou na bolsa da Kika?
Pedro tirou a boca do instrumento rapidamente, apenas para falar:
– Ela tá no quarto laranja.
Depois a cozinha voltou a ser preenchida pela música, dessa vez um chorinho.
Tito foi atrás de Kika, e eu peguei uma banana na fruteira em cima da mesa e fui pra fora comendo. O dia estava lindo. Voltei a sorrir... Juntei as mãos e as pressionei, com as palmas se tocando e os dedos apontando para cima, no centro do meu peito... Olhei para o céu maravilhosamente azul, imenso, infinito, e agradeci mentalmente.
Logo depois, avistei Luiz e Nina fazendo saudação ao sol perto do abacateiro. Joguei a casca de banana no buraco da compostagem e fui me juntar a eles, feliz pelo dia que prometia continuar magnífico.


Esperei na calçada...
Amarelo.
Me coloquei na faixa de pedestres, na frente dos carros impacientes.
Algumas buzinas rosnavam, competindo com a música que Pedro tocava. Comecei a dançar com os malabares. Braços, mãos, pernas, quadris, o corpo inteiro compondo o movimento. Adorava não só o prazer que o Swing Poi me proporcionava, mas a sensação de percepção do tempo.
Vermelho.
O exato momento de parar, agradecer e passar o chapéu; nem um segundo a mais, nem um a menos. Exato e, no entanto, ritmado não nos ponteiros, mas na respiração, na pele, na transpiração, no momento.
Verde.
E eu já estava de volta à calçada. Sentei no meio fio. Virei o chapéu, as notas e moedas caíram na bolsa de retalhos que estava ao meu lado no chão.
Amarelo.
Fiquei olhando para Artur. Com uma precisão incrível, ímpar, ele jogou o último cone, pegou e deu um salto leão lindo antes de ir em direção aos carros.
Vermelho.
Foi quando eu a vi. Colocou uma nota no chapéu que Artur lhe estendia sem vê-lo. Como se ele não importasse ou, quem sabe, nem ao menos existisse. Quando realmente olhou, foi para mim. Nossos olhares se encontraram. Os olhos dela eu não consegui ver direito, estavam nublados. Sorri para ela, querendo desanuviar aqueles olhos de neblina. Ela sorriu de volta e as nuvens realmente se dissiparam
um pouco, mas foi só durante um instante ínfimo cortado pelas buzinas.
Verde.
Ela olhou para frente, acelerou e seguiu.
Algumas horas depois, o cone, o menino com rastafári, o olhar enluarado, nada mais fazia parte da minha realidade, somente as palavras de Mirella:
– Eu sei que tu saiu com ela, me contaram... E também que não foi somente uma vez, foram várias.
A voz dela era suave, calma, quase carinhosa. Ouvi, baixei a cabeça e assenti:
– Não vou mentir para você, Mirella, aconteceu sim, mas não foi como te contaram, não é o que você está pensando.
Ela me interrompeu:
– Por favor...
Calei.
Ela foi embora, eu fiquei.
Sabia que deveria respeitar a vontade dela, mas não tinha a intenção de tê-la feito sofrer. Naquele momento, eu me culpava por não ter terminado antes, por não ter sido sincera. 
Desde o início, nossa relação estava fadada ao fracasso, já era um anúncio do fim. Uma relação que se fundamentava na ausência da titular... Era isso. Mirella havia perdido seu grande amor, e eu estava ali. Foram, no total, dois anos: um ano de amizade e de compreensão; seis meses de parceria e namoro; três meses de sexo bom; dois meses de rotina; um mês de infidelidade... Que ela tinha acabado de descobrir.
Fechei a porta e a sensação que deveria ser de pesar foi de total alívio. Me senti culpada por isso. Mas foi por poucos momentos, pois logo entendi que minha participação na vida dela havia sido com um objetivo específico: ela deveria continuar. E eu também.
As vezes que saí com outras foram por total acaso do destino, descompromisso com Mirella e comigo, não pensei em rever ou sequer apaixonar-me por qualquer uma delas. Era apenas tesão. Queria testar minha capacidade de frieza e autopreservação, consegui. Egoísmo meu. Mas, como dizia Raul Seixas: “o auge...” Enfim...
Minha vida profissional começava toda segunda à tarde, pois segunda de manhã era meu momento princesa: cabelos, unhas, massagem e tudo aquilo que eu precisava para enfrentar a semana. Uma rotina profissional que não saía do tom, não perdia jamais o equilíbrio, tampouco o rumo. Porém...
Minha semana de vida particular era totalmente diferente. Como boa geminiana, todas as regras impostas pelo trabalho e o dia a dia marcado pelos ponteiros do relógio se desfaziam no momento em que saía do escritório. À noite, seguia o fluxo da brisa. Às vezes me levava ao mar, às vezes ao continente. Às vezes tormenta, às vezes calmaria. Mirella surgiu como tormenta e agora sequer uma marola erguia. Era assim...
Quinta. Seguia para a rotina enquanto houvesse sol. Assim que parei na sinaleira, lembrei-me da lua, aquela que vi no olhar da menina, mulher, sentada “à beira do caminho”. 
Procurei, mas não encontrei. Precisava achar algum dinheiro no console do carro, pois... Rotina. Sem olhar, estendi o braço com a nota de dois reais na mão e larguei no chapéu.
– Obrigada, moça...
Assim que ouvi a voz macia, suave, enluarada, ela já estava no carro da frente. Uma olhadinha discreta em minha direção, um sorriso.
Retribuí?
Os cabelos compridos castanhos, dourados, caindo pelas costas.
Uma saia longa colorida, blusa branca colada ao corpo, com alcinhas fininhas revelando vários desenhos na pele. Fiquei curiosa em conhecê-los... Todos.
Verde... Acelerei sorrindo da minha momentânea fantasia sexual com a moça da sinaleira.
Meu calendário fluía, e sempre que passava na sinaleira a procurava.
Não mais a vi.


Mantive meus olhos erguidos, fixos na lua. Cheia, magnífica. Seus raios iluminavam minha pele, me traziam força, energia, magia. Uivei em direção a ela.
Pedro e Luiz pararam de se beijar para me acompanhar. Rimos.
Tito chegou, sentou na rede em frente à minha, apertando um baseado enquanto dizia:
– Tava pensando da gente sair amanhã, daí podemos ir parando com calma pelo caminho...
Concordei na mesma hora:
– Acho uma ótima.
Dandara chegou, sentou num dos tocos de madeira. Tito perguntou:
– Quando é que a gente tem que chegar lá no festival?
– Sexta.
Ele lambeu a seda, fechou, acendeu e tragou.
– Perfeito! – Passou para Dandara antes de completar: – Então vamos amanhã mesmo.
Dandara me passou o baseado. Traguei, segurei, soltei e repeti mais uma vez. Estiquei o braço em direção a Tito, ele fez o mesmo.
Pegou da minha mão no instante em que Dandara colocou Could You Be Loved e começou a dançar, cantando junto com Bob Marley.
Movi os braços, acompanhando o ritmo preguiçosamente, a brisa trazendo a marola em minha direção. Respirei fundo, fechei os olhos.
A rede continuou balançando bem de leve. Fiquei assim durante um tempo, apenas curtindo aquele momento.
Senti um toque suave em meu rosto e abri os olhos. Kika estava me olhando, ajoelhada na minha frente. Me passou o baseado, fumei, ela pegou de volta, entregou para Tito e voltou a me olhar. Cheguei para o lado e convidei:
– Quer deitar aqui comigo?
Ela deitou ao meu lado, virada para mim. Aproximou o rosto do meu lentamente. Nossas bocas se encontraram. Um beijo doce, suave e, ao mesmo tempo, deliciosamente ardente. As mãos dela passearam pelo meu corpo, as minhas fizeram o mesmo.
Nossos lábios se separaram devagar. Meus olhos nos dela, os dela nos meus... Pediu de uma forma absolutamente meiga:
– Fica comigo hoje?
Me arrepiei inteira e soprei de volta:
– Sim, eu quero.
Sorrimos juntas. Da mesma forma, levantamos da rede e caminhamos de mãos dadas para dentro de casa. Ao cruzarmos a soleira da porta, ainda pude ouvir a voz de Dandara acompanhando a música.


Ao final de cada dia, passava no apartamento de Diana e Inês. Já estava readaptada à rotina da casa. Abria a porta e Toríbio pulava em minhas pernas seguido de Floribela, os dois buldogues ingleses que eram a vida de Diana. Procurei pelo térreo em busca de Bartolomeu e Serafim, dois gatos persas: Bartolomeu branco como a lua, Serafim negro como a noite. Encontrei-os dentro do roupeiro do quarto delas, escondidos no meio dos casacos. Mais uma caminhada pela casa e encontrei Serena, uma gata angorá cinza. Distribuí biscoitos, cafunés, massagens e algumas palavras sem sentido, que só percebia depois de proferi-las, mas fazia sem culpa, pois os adorava. No fundo sabia que me entendiam mais do que muitas pessoas com as quais convivia.
Me despedia de Dona Marta, a pessoa responsável por cuidar e administrar a casa há alguns anos, e voltava para meu apartamento, meu refúgio. Minha prisão.
Naquela manhã, saí de casa com uma satisfação a mais. Diana e Inês retornariam naquela noite e minha vida voltaria para minha anormalidade, pois a rotina de ir toda noite na casa delas já estava me deixando exausta, apesar de adorar os pequenos, como os chamávamos.
Parei no sinal e...
– Oi, moça...
Não tive tempo de percebê-la antes do que ela a mim. Parada na minha janela, que abri por inteiro. Sorri.
– Oi...
Ela brilhava, não sei se pela luz do dia ou se era eu a iluminá-la, pois minha felicidade em vê-la foi instantânea.
– Tá indo pra lá?
Apontou para a única direção possível de eu ir, pois era uma mão única. Respondi meio que sem entender a pergunta:
– Sim...
– Me leva contigo, preciso ir para lá também.
Sorri, entendi que pedia uma carona.
– Claro... Entra...
Falei sem a menor inquietação ou receio. Ela deu a volta, o sinal abriu, alguém gritou para ela:
– Maria... Vai voltar?
Ela se projetou para o meu lado, apoiando as mãos em meus braços, que seguravam o volante, e respondeu pela minha janela:
– Não sei... Talvez.
Suas mãos e braços invadiram meu território sem pedir permissão, e não me incomodei. Seus braços roçaram meu corpo, os cabelos com cheiro de flor se espalharam em meu colo, em meu peito, alguns fios em meus lábios, me preenchendo e tomando meus sentidos um a um. Senti a textura, o cheiro, o sabor. Antes de retornar à posição em seu acento, parou o olhar no meu:
– Valeu...
Afastou-se, acelerei.
  
Nota:
¹Swing Poi: O Swing poi é um instrumento de malabarismo. Consta de uma corda com uma bola no fim, terminado em fitas coloridas. Foi criado pelo povo Māori da Nova Zelândia (poi significa bola no idioma Māori).
Exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=1Qj86rubQW0

OBS IMPORTANTE: 
O livro não está completo aqui no site, disponibilizamos apenas os três primeiros capítulos para degustação. 

postado originalmente 29 de Outubro de 2013 às 18h. 


CAPÍTULO 02



CAPÍTULO 02
Ela se virou para mim quando parou no sinal vermelho seguinte:
– Muito prazer, eu sou a Cristina.
Achei graça no jeito que falou. Um tom bem humorado, solto e leve. Respondi sorrindo:
– Maria.
O sinal abriu e ela seguiu. Quando virou a esquina, eu pedi:
– Dá uma paradinha ali?
Ela me olhou sem disfarçar a surpresa, mas me atendeu. Expliquei:
– Tenho que pegar uma parada na casa do meu amigo.
Na mesma hora, ela perguntou:
– Que parada é essa? Não é droga?
Entendi a preocupação dela. Tranquilizei-a:
– Não. Nada disso. É uma boneca que vamos usar na performance de hoje à noite. Vai ter um luau na Praia do Forte, você podia vir...
Antes que ela me desse a resposta, abri a porta e desci. Voltei alguns minutos depois carregando Monique, uma boneca de pano muito maior do que eu. Ela sorriu, divertida.
Já saindo do carro e vindo até mim, ela perguntou:
– Quer ajuda?
Abriu a porta de trás e avaliou as várias camadas de saias de tule que a boneca vestia:
– Será que cabe?
Já sentando Monique no banco, respondi:
– Claro que sim!
Assim que voltamos a entrar no carro, percebi a música que estava tocando: Flores Astrais do Secos e Molhados. Parei para escutar e cantei junto.
Ela voltou a sorrir.
Quase esqueci para onde estava indo. Na verdade, quando vi, já tinha passado um pouquinho do ponto. Falei:
– Me deixa aqui.
Ela parou. Agradeci:
– Valeu mesmo, viu?
Beijei-a no rosto, desci, peguei Monique e, antes de me virar e me afastar, voltei a convidar:
– Não esquece: hoje, depois das dez, na Praia do Forte. Eu vou cantar, aparece lá!
Fiquei sorrindo.
– Maria... Também...
Porém, nela era perfeito.
– Maria... – Nunca havia gostado tanto de falar: – Maria...
Observei-a sumir da minha vista. Absorta na imagem, na voz calma, no jeito leve, gestos suaves e na paz que ela deixou no ar. Buzinas me invadiram o pensamento e me arrancaram daquele momentâneo lapso em meu raciocínio. Dei sinal e saí em direção ao retorno, pois
havia me afastado alguns metros do meu destino, mas meu sorriso, ainda tatuado no rosto, não permitia arrependimentos:
– Maluca...
Secos e Molhados ajudaram no meu momento psicodélico. Dirigi em direção a minha rotina cantando alto com Ney Matogrosso.
O dia no escritório passou sem grandes acontecimentos e sabia que Dona Hermínia havia providenciado tudo para o retorno de Diana e Inês. Relatórios, reuniões, correspondências e fofocas.
Contava tudo a elas, inclusive sobre minhas saídas e entradas com datas e horários.
– Boa noite, Dona Hermínia, e ótimo final de semana – falei já na porta de saída, porém a ouvi responder:
– Boa noite, doutora, e juízo.
Sabia que não fazia por mal, mas às vezes esperava que ela me tratasse como adulta, da mesma forma que esperava isso de Diana e Inês.
Entrei na garagem do prédio pensando na garota da sinaleira. No elevador, lembrei-me do cheiro. Entrei em casa sorrindo, os cabelos dela em meu rosto. Em meu quarto, abri os botões da blusa e tirei...
O toque de suas mãos em meus braços. Entrei no chuveiro, o sorriso dela ao dizer “Maria”. Quando vi meu reflexo no espelho, só conseguia me lembrar daquele olhar a centímetros do meu. Decidi arriscar.
– Um luau, faz séculos que não faço isso... Por que não?
Quando estacionei o carro próximo à praia, visualizei o grupo ao redor da fogueira. Muitas pessoas circulavam entrando e saindo da areia, outros saíam do mar, outros entravam nele. Caminhei em direção ao grupo que dançava ao redor do fogo e logo a vi.
Tenho certeza que Janis Joplin, assim como eu, ficaria extasiada se visse o quanto sua música combinava com o ritmo sensual com que ela se movia. Quem sabe sentiria a mesma vontade que eu de tocá-la, sentir sua pele, os cabelos, o corpo que balançava como se a música fosse ela. Uma sensação de melodia entrando em todos os poros do meu corpo a cada movimento dela. Piece of My Heart...
Ela abriu os olhos e sorriu. Eu também.


Palpitando, pulsando, respirando o andamento, o tom, as curvas da música. Inteiramente entregue, imersa no prazer visceral que a voz de Janis impunha.
Então, mesmo sem saber ao certo o motivo, como se precisasse, como se algo me chamasse ou alguém me tocasse, abri os olhos e a vi, parada a alguns metros, me olhando fixamente. Sorri para ela, e ela para mim – com um olhar estrelado, sem nuvens.
Caminhei na sua direção. Falei:
– Que bom te ver aqui.
Mas não fui ouvida:
– Quê?
Aproximei minha boca bem pertinho do ouvido dela e repeti:
– Que bom que você veio.
Como resposta, ela voltou a sorrir.
A música terminou, e ela aproveitou para falar:
– Vou p egar uma bebida. Quer a lguma coisa? U m vinho? Uma cerveja?
Apesar da amabilidade com que a pergunta foi feita, recusei:
– Eu não bebo.
A primeira reação foi surpresa, depois voltou a ser gentil:
– Nem um suco? Ou um refri?
Respondi sorrindo:
– Não, obrigada. Vamos começar a fazer um som agora. Você vai ficar, né?
Sem desviar os olhos dos meus, ela disse:
– Eu vim pra te ver... Cantar.
Eu ri, meio sem saber o porquê. Avisei:
– Não vai esperando muito, não sou cantora nem nada, só ensaiei algumas músicas com o Pedro...
O olhar dela desceu e permaneceu na minha boca durante um bom tempo. Pairou entre nós um silêncio, que eu quebrei:
– Ele insiste, insiste e sempre acaba me convencendo...
Recuei três passos, ainda olhando para ela. Dei de ombros:
– Fazer o quê?
E só então me virei, sabendo que o olhar dela continuava em mim.
Foi assim a noite inteira. Cada vez que eu a procurava, ela estava lá, os olhos encontrando os meus enquanto eu cantava, conversava com alguém, tocava triângulo ou pandeiro. Não se aproximou, nem eu. O contato entre nós era apenas visual e, no entanto, não me deixaria mais excitada se me acariciasse o corpo inteiro.
Não sei direito quantas horas, deliciosas e intermináveis, passaram daquele jeito. Até que eu não aguentei. Sussurrei para Pedro:
– Vou dar uma fugida.
Ele seguiu meu olhar e imediatamente entendeu:
– Vai lá.
Ela sorriu, absolutamente receptiva quando me aproximei. Como se dissesse: “estava esperando por você...”
Mas não havia necessidade de palavras. Estava claro, tínhamos nos falado com os olhos a noite inteira. Peguei-a pela mão, puxei-a, e ela veio.


O encantamento em vê-la se balançar tendo o céu estrelado como fundo e o barulho das ondas quebrando na praia fazia daquele quadro, daquele contexto, algo surreal para mim. Era como se estivesse em um mundo paralelo ao meu. Ninguém ali estava preocupado com a roupa, com a maquiagem, com a performance sedutora. 
Alguns se aproximavam, diziam alguma coisa, me perguntavam se queria fumar... Nunca fui muito adepta à maconha. Apesar de na universidade conviver com isso diariamente e fumar esporadicamente, ela não fazia parte da minha vida. Não mais.
Mas, naquele momento, poderiam me oferecer o que quer que fosse, não ia me interessar. Meu olhar estava preso naquele ser. Algo nela me prendia. Não sei se era o corpo, se era a voz, o brilho, a lua que via nela... Gravitei nela a noite toda.
Ela se aproximou no momento que eu esperei que viesse. Me puxou pela mão. Não sabia em que direção iria, não me interessava mais o rumo, ela poderia me levar para onde quisesse. Assim que nos afastamos, o som ficou longe, o fogo era apenas uma vela na areia. 
Ela soltou minha mão, virou-se para mim, sorriu e levantou o vestido branco até a cabeça. Tirou-o, jogou de lado...
– Vamos entrar...
Esperou. Não consegui entender o que ela queria, pois a última coisa em que eu pensei foi em entrar no mar. Dei um passo em direção a ela como se não houvesse outra possibilidade, sequer havia.
Fiquei a centímetros de seu rosto. Não a toquei, mas senti todo o seu corpo vibrar e o meu respondeu no mesmo tom.
Ela esperou. O vento trouxe seus cabelos, que roçaram em meu rosto. Aproximei meus lábios e a toquei de leve, ela retribuiu e afastou-se como se quisesse olhar o que ia beijar. Sorriu. Roçou os lábios, sem pressa, experimentando. Atingiu minha irracionalidade, o ponto em que pensar já não é mais permitido. Segurei-a pela cintura, o contato de minhas mãos na sua pele, seu corpo quase nu roçando no meu... O beijo foi o elo que faltava.
Senti-a entregue, dando-se por inteiro. E eu a queria.
Lentamente fomos descendo, já não me importava mais a areia, o mar. Segurei-a em mim, e ela abriu-se lindamente sobre minhas pernas. Ficamos por alguns momentos assim nos percebendo, conhecendo, fazendo de cada descoberta um prazer. Gemidos, sons sussurrados, respirações. Percebi que já estava sem a roupa quando a areia roçou em minhas costas. Ela arrancava minhas roupas, tirava abruptamente meu mundo... E eu deixava.


Eu queria mergulhar, flutuar, sentir, molhar meu corpo, minha pele. Ela me proporcionou isso sem que entrássemos na água, com a respiração, as carícias, os beijos. Os lábios dela me levando. As mãos desvendando e, por mais incrível que parecesse, expandindo todos os limites que eu já tinha rompido... De conexão, pulsão, entrega. Não pedia, exigia. E a minha maior necessidade era atendê-la.
Ela não hesitou, veio comigo igualmente se permitindo. Só quando a fiz deitar na areia, esboçou uma leve oposição:
– Espera...
Não parei o que estava fazendo. Continuei beijando, sugando o pescoço, ondulando meu corpo contra o dela.
– Quê?
A respiração ofegante dificultou, mas, ainda assim, ela conseguiu me responder:
– Vamos sair daqui... Continuar em outro lugar...
Sussurrei:
– Não. É agora... Aqui...
E ela apenas assentiu.


Assenti àquela imperativa sentença sem a menor resistência, pois algo ali se manifestava e o medo de perder o tempo, o momento, ela, me fez transformar areia em plumas. Levantei o corpo o suficiente para forçá-la a se virar. Ela sorriu.
– Gosta de ficar por cima? – falou enquanto o beijo permitiu.
Sorri e a virei novamente, respondendo quase sem ar:
– Quero te ver... De todas as formas...
Segurou meus braços no alto e deixou seus cabelos acariciarem meu rosto, fechei os olhos e senti seu corpo suavemente se esfregar no meu, no ritmo da música que ouvíamos ao longe. Dançava, sem pressa, sobre mim. Senti-a em toda sua nudez, pele, sexo. Não suportei a ideia de prolongar minha vontade dela, beijei-a com necessidade e segurei-a pelos pulsos, fazendo-a trocar de lugar comigo.
Ela gemeu, contorceu-se como se buscasse saída, porém mais se entregava.
Explorei-a com os lábios, com minhas mãos, com meu corpo.
A lua atingia seu esplendor sobre o mar: imperfeita, porém linda.
Assim, com a sensação de que aquele contexto se complementava, um não existia sem o outro – areia, mar, lua e ela –, deflorei aquele mundo como se disso dependesse o meu. Nossos corpos dançavam outra música, aquela que vinha do mar. Entrei, ela permitiu, abriu-se. 
A possuí e me entreguei para aquela alucinante melodia. Quase perdi o ritmo dela quando senti o tremor em meu corpo. Ela segurou minha mão, permitindo meu descontrole sem perdê-la. Gozamos juntas.


Fiquei ali deitada de olhos fechados, sorrindo, sentindo, fluindo. O corpo dela largado sobre o meu. Depois de um último tremor, a respiração oscilou, descontrolada ainda, quase dentro do meu ouvido. O pulso no mesmo compasso que o meu seguia.
Inspirei, expirei, ainda no ritmo narcotizante em que tudo tinha acontecido.
Ela se moveu. Levantou o corpo devagar, me olhou e sorriu com um olhar de verão, que fez a brisa quente me arrepiar e a areia úmida amornar debaixo de mim.
Beijei-a, ela correspondeu. Fui virando o corpo, trazendo-a junto de mim. Fiquei por cima. Brinquei:
– Agora me vê assim...
Não estava satisfeita. Queria, precisava senti-la, e que ela me sentisse mais ainda. Passeei, acariciei, toquei... Com os cabelos, as mãos, os dedos, a boca, a língua.
Ela deixou, se entregou, permitiu, com um despojamento magnífico.
Deliciosamente livre, gozou pra mim.


A sensação de senti-la ali, me devorando com a língua... Quase conseguia alcançar as estrelas, com a percepção de que a Terra era pequena demais para a extensão do universo que ela me mostrava.
Senti a areia penetrar em minhas unhas quando fechei os dedos tentando suportar a explosão que senti em todo meu corpo.
Antes que eu conseguisse controlar a respiração, ela subiu se esfregando.
Me beijou, sorriu e, como sempre, imperativamente, disse:
– Vem comigo...
Levantou-se e me levou junto, caminhou em direção ao mar. A sensação de sentir a água, as ondas e o calor foi surpreendentemente confortante. Ela se virou, me puxou para junto dela.
– Adoro o mar depois do amor...
Me beijou.
Uma sensação estranha me invadiu. Havia muitas informações naquela simples frase. “Faz isso sempre. Fizemos amor, foi igual ao que ela faz com os outros ou outras.”
Não tive tempo de racionalizar mais nada, a vontade de recomeçar foi urgente quando ela se virou e ficou de costas. Sentia-a se esfregando em meu corpo e minhas mãos a exploravam sem medo, sem dúvidas, sem receios. Até que ouvimos:
– Maria... Maria...
Ao longe, mas não paramos. Ouvimos novamente, mais alto. Ela respondeu sem sair do contato:
– Já vou... – Virou-se para mim, me beijou e disse: – Tenho que ir.
E saiu da água. Acompanhei-a com olhos por alguns momentos e depois fui atrás. Coloquei a roupa, ela apenas o vestido, deixou a calcinha na minha mão. Sorri...
Quando me aproximei, ela já estava absorta no papel que tinha a desempenhar. Fiquei ali, observando de longe. Divertindo-me com a performance que apresentavam, até que uma cena me trouxe à realidade.
O rapaz que havia cantado com ela a pegou pela cintura no final do ato e beijaram-se. Um beijo pleno, repleto de cumplicidade.
Meu sorriso foi sendo substituído por nostalgia. Olhei para ela assim que se soltaram e fui saindo devagar entre as pessoas que circulavam alheias à minha súbita pressa de correr dali.


Quando a performance chegou ao final, estávamos, como sempre, com energia transbordando por todos os poros. Pedro estava ao meu lado, nos olhamos, ainda trocando. Natural passar meus braços ao redor do pescoço dele, ele me pegar pela cintura e nos beijarmos.
Quando nos separamos, olhei em volta, procurando por ela.
Localizei-a, de costas, se afastando. Teria ido atrás, mas, naquele exato momento, Kika surgiu na minha frente, me abraçou e nos beijamos também.
Voltei a buscá-la com o olhar. Passei pelas pessoas, caminhei na direção que ela havia tomado na última vez que a tinha visto, mas não consegui mais encontrá-la. Provavelmente, tinha ido embora.
Fiquei ali parada, olhando para a ausência dela, estranhando o sentimento que surgiu. Desapontamento.
Não deixei que se estabelecesse.
Virei, voltei para a festa. Comecei a dançar. Mas não esqueci inteiramente.

OBS IMPORTANTE: 
O livro não está completo aqui no site, disponibilizamos apenas os três primeiros capítulos para degustação. 

postado originalmente 05 de Novembro de 2013 às 18h. 

CAPÍTULO 03



CAPÍTULO 03
Assim que entrei no carro, meu celular deu sinal de mensagens, que, aliás, eram muitas. De Inês. Provavelmente já estavam em casa, mas eu deixaria para ligar depois.
As roupas pesadas da areia da praia foram caindo no chão do banheiro à medida que as tirava, uma a uma. O chuveiro limpou o que havia em meu corpo. Deixei descer pelo ralo aquele momento alucinado que me permiti viver com aquela garota... Alucinante.
Sorri olhando para minhas unhas: areia, pele, suor, vestígios de uma noite que eu jamais esqueceria. Talvez jamais se repetisse, mas ficaria em minha lembrança como uma das melhores da minha vida. As estrelas, o céu, a lua... Maria... Linda.
“Adoro o mar depois do amor...”
A frase latejava em meus tímpanos.
Deixei a água escorrer em meu corpo por um longo tempo. “Ela chamou de amor.” Fiquei imaginando o que diriam meus amigos, Diana e Inês ou qualquer pessoa que fazia parte do meu mundo. Me chamariam de louca... E eu me achava louca naquele momento. Não sabia como tinha ido parar naquela praia, tampouco o que me moveu em direção àquela menina. A única certeza é de que fora inesquecível.
Saí do banho com a sensação de que havia deixado escorrer pelo ralo aquela noite e de que tudo que acontecera fora um sonho.
Percebi que tinha sido real e que talvez não fosse tão fácil assim esquecer quando vi a calcinha dela pendurada na cabeceira da minha cama.
Acordei no sábado de manhã com o telefone e o celular gritando.
Achei o celular no criado mudo, no visor estava escrito Diana. Peguei o telefone e, nele, Inês. Atendi os dois:
– Voltaram mesmo...
– Onde você estava?
– Sumiu por quê?
As duas cobravam ao mesmo tempo, a mesma coisa. Ainda deitada com o celular em um ouvido e o telefone no outro, ambos próximo à boca, respondi:
– Foram bem de viagem?
– Não disfarça...
– Vai vir aqui hoje, não é? Inês, desliga esse telefone.
Sorri, pois imaginei cada uma com um aparelho.
– Vou, assim que acordar, tomar um banho, café... Pode ser?
– Não demora.
– Estaremos esperando... Beijo, querida.
Desligamos. Antes de sair da cama, dei uma olhada para calcinha pendurada. Deixei-a ali só para me dar a certeza de que tinha sido real.
Abri a porta e imediatamente Toríbio e Floribela pularam em minhas pernas, tive que abaixar e fazer cafuné nos dois.
– Já estão com saudades, é? Agora suas humanas chegaram, torturem elas.
Inês já se aproximou, com Serena no colo, sorrindo:
– Pode contar tudo...
Me abraçou forte. Em seguida, Diana completou enquanto me abraçava:
– Deixe a Cris em paz, Inês.
Já sabia que elas queriam saber de Mirella, pois Dona Hermínia já deveria ter adiantado informações.
– Terminamos, Inês, como você já previa e com certeza já sabe.
As duas me olharam e riram antes de Diana responder enquanto me puxavam para a sala:
– Você sabe que Inês não se aguenta, né? Claro que ela sabe... Mas tudo bem?
Perguntou demonstrando preocupação. Minha resposta já foi para mudar de assunto:
– Sabem que sim, eu e Mirella não tínhamos muito futuro... Então... Quero saber de tudo, podem começar!
Passamos o sábado e o domingo juntas, dormi em meu antigo quarto e, depois de saber dos detalhes da viagem, ver fotos, receber os presentes e matarmos a saudade de conversar, nos despedimos no domingo à noite.
– Até amanhã...
Abracei-as na porta, carregada de sacolas com os presentes e com Toríbio e Floribela pulando em minhas pernas.
– A reunião é à tarde, portanto só chegarei perto das 14 horas.
Inês completou:
– Nós também...
O fim de semana acabou e com ele a certeza de que veria Maria, a menina da sinaleira. Algo em mim se alegrou quando pensei nisso.
Adormeci com uma lembrança em meu pensamento. Areia, estrelas, céu... A lua.


Sentei na grama com as pernas cruzadas e os joelhos à frente do corpo – aquilo que as pessoas chamam de “pernas de índio”. Fechei os olhos e ergui o rosto para o sol, para melhor senti-lo.
Dandara, Pedro, Luiz e Kika começaram a tocar e logo depois a cantar Sabor Colorido de Geraldo Azevedo.
Abri os olhos. Olhei para eles e sorri, feliz. Lindos, tão lindos, sentados ali... Eu era parte deles. Eles, parte de mim.
Peguei a pandeirola ao meu lado e os acompanhei.
Reconheci o carro assim que parou no sinal. Meu sorriso aumentou.
Colhi uma flor amarela no canteiro, corri até lá e bati no vidro.
Ela abriu. Ofereci sorrindo:
– Pra você, moça linda.
Ela olhou com hesitação para a flor. Depois a pegou. Achei graça no jeito que agradeceu, de maneira formal demais depois do amor maravilhoso que tínhamos compartilhado na praia.
– Você sumiu naquele dia...
Só então ela olhou para mim de verdade. Nossos olhos se encontraram.
Nos dela, neblina.
– Ah, você percebeu?
Apoiei as duas mãos na janela do carro. Me aproximei, ela recuou um pouco e encostou as costas no banco. Passei as pontas dos dedos no rosto dela, numa carícia suave. Minha voz saiu sussurrada:
– Te procurei.
As brumas se dissiparam, o olhar dela voltou a ficar estrelado.
Sorri, ela também.
Os carros começaram a buzinar atrás. Ela acelerou. Gritei:
– Passa lá na praia hoje à noite, vou estar lá... – Sem saber se ela escutou.


– Cristina... Maria Cristina!
Quando ouvi meu nome ser chamado dessa forma, percebi que estava totalmente fora daquela sala. Me recompus na cadeira, tossi e respondi:
– Desculpa, doutora, não ouvi a pergunta.
Diana me olhou desconfiada e repetiu:
– Os contratos do Estaleiro foram revisados?
– Todos, fiz pessoalmente... O senhor Roberto pode começar a vender os barquinhos.
Respondi ironicamente, porém de forma segura, e Diana mudou o foco para os estagiários que buscavam aprovação para as contestações e petições que haviam feito. Aproveitei para me retirar da reunião:
– Estou dispensada?
Perguntei a Inês, pois Diana estava concentrada nas pastas na sua frente.
– Pressa, hein? Vai pra onde hoje? – ela falou baixinho e sorriu rodando na cadeira em minha direção. Respondi sem olhar para ela:
– Para casa.
– Sei... Pode ir, qualquer coisa ligamos.
Sei que ficou desconfiada, mas não era hora de contar nada sobre sinaleiras, areia, lua e calcinhas. Elas não entenderiam.
Fiquei a tarde toda pensando naquele convite inusitado. Se ela fosse uma pessoa normal, teria certeza que ela convidara porque queria repetir, mas podia esperar qualquer coisa dela. Depois do que acontecera na outra noite, nada me surpreenderia. Tinha que pensar se estava disposta a ir e assistir a ela com outras pessoas ou se iria e faria algo para tê-la novamente. Decidi pela segunda opção.
Fui para casa, tomei um banho e escolhi uma roupa que, se tivesse que rolar na areia de novo, não teria problemas. Sorri com meu pensamento, pois sabia que minha intenção estava longe de rolar na areia novamente. Antes de sair do quarto, olhei para a calcinha pendurada, sorri... Deixei-a ali.


Cheguei à praia e outra vez aquele vai e vem de pessoas na areia.
A noite quente estava perfeita para um banho de mar. Procurei-a e logo a vi, sentada. Surpreendeu-me de novo, pois ela estava com um bebê no colo. Me aproximei.
Ela olhou para mim, para Benvindo, depois para mim de novo, com um misto de... Estranhamento? Constrangimento? Receio? Eu não consegui interpretar.
– É seu?
Eu ri.
– Você quer saber se eu sou a mãe biológica?
Continuou me olhando fixamente, com aquela horrível expressão indefinível.
– Você é?
Respondi:
– Não.
Dessa vez a reação dela foi clara: alívio.
– Mas não faz diferença. Ele é nosso. Quando a Nina ficou grávida, nós decidimos assumir.
Sarcasmo:
– Nós?
Instintivamente, apertei Benvindo contra mim:
– Sim.
– Então vocês são um casal?


Olhei dentro dos olhos dela, tentando decifrar o que as brumas escondiam. Não as dela, mas as minhas. Por que eu estava ali, deixando ela me interrogar, julgar, acusar... Pior: tentando explicar?
– Não. Nós... A trupe.
Ela riu como quem não acredita:
– Trupe?
Apertei Benvindo de novo, dessa vez ele protestou, tentando se desvencilhar. Aliviei a pressão do meu abraço, beijei o rostinho melado, ele riu.
– Esse bebê tem pai?
Não aguentei:
– Com certeza ele não é resultado de partenogênese...
Nossos olhos se encontraram. Os dela totalmente nublados:
– Na certidão de nascimento.
Sem saber como nem por que, contra tudo que eu pensava e sentia, continuei ali, esclarecendo:
– O Tito registrou.
O nevoeiro se tornou ainda mais frio.
– Não pensaram em fazer um exame de DNA?
Me fez perder a clareza de novo:
– Quê? Pra quê? Eles tiraram na sorte e o Tito...
O sorriso dela foi irônico:
– Perdeu?
O meu tinha um toque de condescendência:
– Ganhou – corrigi sem conseguir me indignar, aquilo sequer me surpreendeu. Eu até compreendia. Afinal, apenas alguns anos antes, eu também vivia nesse mundinho dela. Mas já não fazia parte da minha vida. Não mais. Só estava permitindo o contato com aquele tipo de pensamento, naquele momento, porque... Porque...
Parei, perplexa, quando a percepção finalmente me atingiu: não conseguia – sequer queria – evitá-la.
Ela quebrou o silêncio que se estabeleceu:
– Desculpa...
De um jeito lindo que me fez mudar o tom completamente:
– Vem cá. Senta aqui.
Ela olhou para a areia, sorriu e me estendeu a mão. Aceitei. Ela me puxou, me ajudando a levantar, aproximou-se. Parou e ficou olhando para o bebê. Pedi:
– Me espera?
Concordou de imediato, com um aceno de cabeça. Entreguei Benvindo para Rosa e voltei. Peguei-a pela mão e fui puxando para longe da fogueira, exatamente como na outra noite, só que dessa vez ela me parou.
Virei, sem entender.
– Hoje você vem comigo.
Falou num tom de convite.
Me deixei guiar... Sorrindo.


Entramos no carro e por alguns momentos nossos olhares se encontraram.
Ela sorriu, me aproximei e nos beijamos. Era o que queria ter feito desde a hora que cheguei àquela praia.
No elevador, ela segurou minha mão. Seu olhar me iluminava.
Saímos assim para o corredor de mãos dadas, coladas. Abri a porta com ela presa em mim. Fechei-a e não deixei que se movesse mais, encostei-a na parede e colei meus lábios nos seus. Ela gemeu, mordeu.
Me afastei... Falei, olhando dentro do seu olhar:
– Esta é minha casa...
Ela sorriu e respondeu da mesma forma, sem desviar os olhos dos meus:
– Legal...
Mais um beijo, mais uma informação:
– Tem que ver a cama...
Peguei-a pela mão e a conduzi até meu quarto.

OBS IMPORTANTE: 
O livro não está completo aqui no site, disponibilizamos apenas os três primeiros capítulos para degustação. 

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postado originalmente 12 de Novembro de 2013 às 18h. 


LISTA DE MÚSICAS e LINKS





01 - Could you be Loved – Bob Marley
http://www.youtube.com/watch?v=tr-yQaMbQ3o

02 - Flores Astrais - Secos e Molhados
http://www.youtube.com/watch?v=M7kQbv4S8s8

03 - Piece of My Heart - Bert Berns - Janis Joplin
http://www.youtube.com/watch?v=iJb7cBfrxbo

04  - Sabor Colorido - Geraldo Azevedo - versão Raiz do Sana
http://www.youtube.com/watch?v=mN2Blky_rsY

05 - Nosso Estranho Amor - Caetano Veloso
http://www.youtube.com/watch?v=zpWAiRBIlXk


06 - Anunciação - Alceu Valença
 http://www.youtube.com/watch?v=WjdmRKYf9DI

07 -  Canção da Meia Noite - Zé Flávio - versão Nenhum de Nós
http://www.youtube.com/watch?v=ZKPp9TKBCg4


08 - With a Little Help From My Friends - The Beatles - versão Joe Cocker
http://www.youtube.com/watch?v=3xJWxPE8G2c 


09 - À Palo Seco - Belchior - versão Wander Wildner
http://www.youtube.com/watch?v=zYFt7HwDgTs 


10 -  Eu sei - Papas da língua
http://www.youtube.com/watch?v=WVy83AkegiY


11 - Little Girl Blue - Lorenz Hart - versão Janis Joplin
http://www.youtube.com/watch?v=_rsgdvinCc8


12 - Hard Headed Woman - Cat Stevens
http://www.youtube.com/watch?v=lsJqfG97J3o  


13 - Prelúdio - Raul Seixas
http://www.youtube.com/watch?v=-2bxSDOarKM 


14 - Wish You Were Here - Pink Floyd
http://www.youtube.com/watch?v=pwpVOkSMc7s 


15 - O Vagabundo - Leva/Bordotti/Reverberi/Scomeegna - versão Engenheiros do Hawaii
http://www.youtube.com/watch?v=qh7sDHzNrsY


16 - Dragão da Bondade - A Barca do Sol
http://www.youtube.com/watch?v=vqMe5J9su80  


17 - Travessia – Milton Nascimento/Fernando Brant
https://www.youtube.com/watch?v=gjn0xsKIUiM

18 -  Dê um Rolê – Novos Baianos
http://www.youtube.com/watch?v=DIM1taAcUM0


19 - Primeira Canção da Estrada - Sá, Rodrix e Guarabyra
http://www.youtube.com/watch?v=3iINb6IlyxI 


20 - Sociedade Alternativa - Raul Seixas

http://www.youtube.com/watch?v=IZdbkC_yobU

21 - Love Hides - The Doors
http://www.youtube.com/watch?v=oDO8jCcrcQQ   

22 - Stand by Me - Ben E. King - versão Led Zeppelin
http://www.youtube.com/watch?v=yPoOu3L5JXo 


23 - Encostar na Tua - Ana Carolina
http://www.youtube.com/watch?v=gn2BjDXxouc

24 - Come as You Are - Nirvana
https://www.youtube.com/watch?v=oZuwH7-kvtw

25 - Ball & Chain - Big Mama Thornton - Janis Joplin
http://www.youtube.com/watch?v=Z1LAphWvPwI 


26 - Tu és o MDC da Minha Vida – Raul Seixas
http://www.youtube.com/watch?v=j6s1Jpfua3M


27 - Welcome to the Jungle - Guns N' Roses
http://www.youtube.com/watch?v=50EPnfOiVGo  


28 -  Vagabundo Confesso - Dazaranha
http://www.youtube.com/watch?v=F3U7QrxUmqw


29 - Astral Weeks - Van Morrison
http://www.youtube.com/watch?v=4ech6pZoBJ4


30 - Luz dos Olhos – Nando Reis – versão Cássia Eller
http://www.youtube.com/watch?v=Biq77kEUHIc 


31 - Como Nossos Pais - Belchior – versão Elis Regina
http://www.youtube.com/watch?v=7XV0MMaApkM 


32 - Aquarius - Galt MacDermot, James Rado e Gerome Ragni – versão do filme “Hair”
http://www.youtube.com/watch?v=05DdCp9mtCQ





http://www.youtube.com/playlist?list=PLn6nsnc3mIxWz85BPVMNBmE0ZHhnXJfD4